terça-feira, 12 de março de 2013

Os ciclistas têm menos direitos que os motoristas





A história macabra do ciclista que perdeu o braço explicita: São Paulo é um lugar perigoso para pedalar. Mesmo numa manhã de domingo. O motorista é uma besta-fera? Não, só mais um bêbado de sábado à noite. Que cometeu crimes horríveis, como tantos cachaçados, e vai ter que responder por eles.
Você duvida que o motorista só percebeu bem depois que tinha um braço pendurado no carro? Imagine o horror de perceber a barbaridade que fez. Você acha imperdoável ele jogar o braço em um córrego? Bem, o que você faria? Levaria ao hospital mais próximo? O cara tem 22 anos e estava bebadaço. Tenho pena dele.
Tenho bem mais pena do ciclista. Mas é a milésima vez que ouvimos a mesma história - esta com detalhes mais sangrentos.Este ciclista está vivo; muitos outros não sobreviveram. Até quando vai essa carnificina? Ou, pergunta melhor: até quando gente sensata vai defender o uso de bicicleta como alternativa de transporte em São Paulo?
Morrem motociclistas às pencas diariamente na nossa cidade. A razão é que existem muito mais motos que bicicletas em circulação. Se fossem em número parecido, os atropelamentos de ciclistas seriam cotidianos, e deixariam de ser notícia. Mesmo os mais horripilantes. Os argumentos pelo direito de pedalar são indignados. Como assim? Os ciclistas não têm Direito de circular de bicicleta por São Paulo? Por que os carros têm mais Direito sob as ruas que as bicicletas? Os argumentos são furados. As pessoas não entendem direito o que é um Direito.
Sim, amigo ciclista, você tem direito de pedalar na marginal Tietê na hora do rush. Você, querida, tem todo direito de assistir o futebol no estádio, usando um biquíni fio dental, no meio da geral. O casal de amigos gays tem, sim, todo direito de namorar na porta da academia de jiu-jitsu.
E por aí vai. As crianças da periferia têm direito a creche, e todos têm direito a uma boa educação, e os presos da cadeia à reabilitação, e os doentes a remédio... e seguimos em direção ao infinito. Temos direitos a roldão. Mas eles só importam à medida que conseguimos defendê-los.
Vamos à prova definitiva de que ter direitos na teoria não quer dizer nada na prática:
Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
Artigo II
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Artigo III
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Artigo VI
Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.
Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Artigo VIII
Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo IX
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo X
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
Artigo XI
1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
Artigo XII
Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Artigo XIII
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.
Artigo XIV
1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas.
Artigo XV
1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.
Artigo XVI
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer retrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
Artigo XVII
1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo XVIII
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo XIX
Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XX
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação..
Artigo XXI
1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo XXII
Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Artigo XXIII
1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses.
Artigo XXIV
Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.
Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
Artigo XXVI
1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito n escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.
Artigo XXVII
1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.
2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
Artigo XVIII
Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.
Artigo XXIV
1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.
Artigo XXX
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.
Bonito. Emocionante. É a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948. É um rascunho de constituição para o planeta Terra. Na realidade, não passa de um manifesto de boas intenções. Por quê? Porque direito não é uma coisa que você tem e pronto. Ou que alguém pode te dar num estalar de dedos. Nem a lei, nem a ONU. Direito você conquista e defende.
Para isso, ele precisa ser primeiro, conquistável, e depois, defensável. A mocinha lá que foi de biquíni ao Morumbi sai incólume, se cercada por karatecas. E um ciclista pode perfeitamente pedalar pelas ruas paulistanas. Se elas não forem estreitas, não estiverem esburaqueadas, e entupidas de motos e carros e ônibus, dirigidas por motoristas estressados que levam duas horas para ir e mais duas para voltar de qualquer lugar. Mas as ruas são objetivamente assim. Na prática, a cidade é totalmente planejada e administrada priorizando o transporte motorizado. Na prática, o motorista tem mais direitos que o ciclista.
O ciclista deve ter o desafio de conquistar e defender uma cidade pedalável, não o de pedalar em uma cidade que lhe impõe risco de vida permanente. Mais seguro primeiro civilizar nossas vias públicas, e depois tirar as magrelas da garagem. Do jeito que São Paulo é hoje, usar a bicicleta como meio de transporte é quase tão perigoso quanto... dirigir bêbado.
O filme A Vida de Brian é a mais concentrada aula de como funciona nosso espírito de horda. Devia ser currículo obrigatório no ensino fundamental. Uma cena ilumina magnificamente a confusão que fazemos com direitos. É durante um encontro da radical Frente dos Povos da Judeia - um grupelho com meia dúzia de militantes que adoram discutir, e sempre arrumam uma razão pra não se arriscar. Um deles de repente vira para os colegas e declara: "eu quero ser mulher. Daqui pra frente, me chamem de Loretta. E mais, quero ter um bebê." Os outros questionam - mas você é homem! Isso é impossível! E ele argumenta: mas eu tenho direito de ser mulher! Quem vai me dizer que não? No final, eles votam e aprovam que Stan se torne mulher e tenha seu bebê. Porque afinal, o cara - Loretta - tem direito.
Direto é assim. Fácil de definir e decretar. Difícil de garantir.

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