sábado, 28 de dezembro de 2013

recuperada




Especialistas recuperam pintura que quase se perdeu com inundação nos anos 60
'A Última Ceia', então exposta no museu da Igreja de Santa Cruz, ficou submersa por 12 horas e foi resgatada encharcada e com a tinta descascando

Mais que a maioria dos artistas da Renascença, Giorgio Vasari conhecia os perigos que cercavam a existência das criações humanas. Em As Vidas dos Artistas, a crônica dos grandes pintores e escultores do século 15 pela qual é mais conhecido, ele descreve como um banco de pedra, atirado de um parapeito por uma turba anti-Médici em Florença, em 1527, “caiu, por obra da Fortuna” sobre o Davi de Michelangelo, quebrando um de seus braços em três pedaços.

Em 1966, também por obra da Fortuna, uma das obras mais majestosas de Vasari teve um destino ainda pior. O Arno transbordou, inundou e quase destruiu Florença e sua A Última Ceia, então exposta no museu da Igreja de Santa Cruz, a alguns quarteirões do rio. Esta cena panorâmica, com quase 6 metros de comprimento e 2,40 metros de altura, permaneceu submersa na água lamacenta e oleosa por ao menos 12 horas, e quando foi finalmente resgatada, seus painéis de choupo-branco estavam encharcados como esponjas, e a tinta que os cobria, descascando.

Durante mais de quatro décadas, a pintura ficou fora de circulação e quase impossível de ser vista, coberta pelo que parecia uma crosta de torta de papel para proteger sua superfície frágil. Alguns consideraram a pintura, concluída em 1546, impossível de ser salva. Mas num laboratório de conservação a poucos quarteirões de distância de onde foi danificada, a obra está lentamente voltando à vida. Como parte de uma iniciativa do Opificio delle Pietre Dure, um dos mais famosos laboratórios de restauração da Itália, e do Museu J. Paul Getty em Los Angeles, cuja fundação investiu mais de US$ 2 milhões para ajudar a treinar substitutos para uma geração de conservadores de pintura em painéis que está envelhecendo, os cinco painéis do quadro foram recentemente rejuntados pela primeira vez desde a cheia.

Os danos na obra foram graves. “Um de meus colegas os chamou de desesperadores, e acho que estava certo”, diz Deborah Marrow, a diretora da Getty Foundation. “Era assustador só de olhar.” Mas o quadro revelou, após quatro anos de trabalho duro, que está notavelmente intato em muitos lugares. Cecilia Frosinini, uma restauradora envolvida no projeto, disse numa entrevista recente que a perda de tinta é estimada em 20% a 30%.

Ao mostrar a um repórter fotos de perto da superfície do quadro usando o Face Time de seu iPhone, Cecilia Frosinini sinaliza muitas das passagens mais dramáticas da obra – as faces de Jesus e de São João, e a figura de Judas assomando grande e dramática no fundo numa espécie de gibão cor de rosa, que sobreviveram muito bem ao desastre e aos anos posteriores. “Ficamos realmente admirados porque esperávamos algo muito pior”, diz a restauradora.

Milagre. A parte de trás dos painéis, apesar de perfurada por minúsculos buracos de vermes e modernos remendos de madeira em alguns lugares, continua em grande parte original, com um dos mais inovadores suportes cruzados que Vasari projetou ainda no lugar.

Se o esforço para restaurar este quadro tivesse sido feito anos atrás, afirmou Cecilia Frosinini, a tinta teria se separado da madeira, que provavelmente não teria sobrevivido. Com os avanços tecnológicos para reparar a madeira, porém, “agora podemos fazer uma espécie de milagre”, acrescentou.

Do século 12 até a tela se tornar o suporte mais comum em fins do século 15, o painel de madeira foi usado por muitos artistas para pinturas portáteis. A Mona Lisa é sobre painéis, por exemplo, mas a madeira pode ser um pesadelo dos conservadores, altamente suscetível que é à umidade e a mudanças de temperatura.

No Vasari, os restauradores usaram cola animal, como artistas da Renascença faziam em reparos, e suportes de madeira para permitir que a pintura continuasse se movendo com a umidade e a temperatura. “A madeira nunca morre de fato”, define a restauradora. “Ela continua a se mover.” Vasari pintou a peça em seu estúdio em painéis rejuntáveis e transportáveis porque suas clientes, as freiras do convento florentino de Le Murate, não queriam um artista homem e seus assistentes trabalhando em seu claustro por até dois anos.

Nas últimas semanas, quando os restauradores se preparavam para enfrentar a superfície de A Última Ceia, eles receberam uma pintura em painel ainda mais conhecida para trabalhar, A Adoração dos Reis Magos, de Leonardo, da galeria Uffizi – ele será submetido a tratamento no próximo ano por problemas menores em comparação com os do Vasari. Levando seu telefone rapidamente para trás do Leonardo, Cecilia Frosinini mostra outra pintura que estava no local para limpeza, Alquimia, de Jackson Pollock, de 1947, da Peggy Guggenheim Collection em Veneza.

Por enquanto, porém, a questão é terminar o Vasari. Dois antigos especialistas italianos em pintura em painéis, Ciro Castelli e Mauro Parri, saíram da aposentadoria para ajudar no projeto e treinar restauradores mais jovens. A carreira de Castelli como restaurador começou em Florença meses após a enchente de 1966, e ele ajudou no trabalho em muitas peças danificadas pela água na época.

“Poucas estavam tão ruins como o Vasari”, afirmou Castelli. Uma descoberta que os conservadores fizeram na superfície da pintura é uma inscrição previamente desconhecida perto da base dizendo que a peça foi restaurada muito antes, em 1549, 20 anos apenas após a morte de Vasari. Também há evidências na pintura de danos de duas enchentes anteriores, o que torna sua sobrevivência ainda mais notável.

Uma verba de mais de US$ 400 mil da Getty Foundation em 2010 para restaurar a pintura está terminando, e os conservadores estão à procura de outro patrocinador para terminar o trabalho. Frosinini disse que o objetivo era completar o renascimento do quadro em 2016. “Será o 50º aniversário da enchente. O rio tentou ganhar este quadro, e seria ótimo dizer, 50 anos depois, que ele não conseguiu.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário